
Por Ana Laura Gomes
Entre os dias 17 e 20 de março, um importante encontro de resistência e troca de saberes ocorreu em Rondônia. O Intercâmbio de Experiências em Monitoramento Territorial reuniu representantes de 21 povos indígenas das paisagens Acre, Rondônia, Mato Grosso e Pará, unindo forças na luta pela proteção de seus territórios. Entre os participantes estavam representantes dos povos Nukini, Oro Win, Munduruku, Amondawa, Jupaú, Huni Kuin, Kayapó, Shanenawa, Matis, Paiter Suruí, Manchineri, Kaxinawá, Tupari, Cabixi, Mayoruna, Jaminawa, Oro Nao, Apiaká, Nawa, Makurap e Borari.
O intercâmbio faz parte do projeto de Proteção de Povos Indígenas e Tradicionais do Brasil, financiado pelo Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento da Alemanha, por meio da rede WWF. A realização foi fruto da colaboração entre a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé e o WWF-Brasil.
O primeiro dia do evento foi realizado no Centro de Cultura e Formação Kanindé (CCFK), em Porto Velho. Ali, os participantes compartilharam relatos sobre seus territórios, destacando desafios como garimpo ilegal, desmatamento, invasões ilegais, queimadas e os impactos das mudanças climáticas. Esses problemas ameaçam não apenas a biodiversidade dos biomas, mas também a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas.
Após o primeiro dia de debates e trocas em Porto Velho, os participantes seguiram para a Aldeia Jamari, do povo Jupaú, localizada na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau. Os Jupaú são referência na vigilância de seu território e têm incorporado novas tecnologias, como drones e celulares, para monitorar e denunciar invasões. Esse trabalho tem sido fortalecido pelo apoio da Kanindé, organização que há anos auxilia na formação de grupos de vigilância territorial junto às associações indígenas.
Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau, líder indígena e presidente da Associação Jupaú, do povo Uru-Eu-Wau-Wau, afirma: “Receber os parentes de outros estados e trocar experiências sobre monitoramento e proteção territorial nos proporcionou aprendizados muito importantes. Receber esse intercâmbio em nossa aldeia, dentro do nosso território, mostra como nossa associação e nosso povo evoluíram no modo de fazer a proteção territorial. Em 2019, fortalecemos o monitoramento inserindo o uso das tecnologias. Meu povo sempre monitorou o território, o uso das tecnologias veio nos fortalecer. E o legal de estar aqui, junto com outros parentes, com outros parceiros, é que cada um pode mostrar as ferramentas que utilizam nos seus territórios.”
Bitaté explica que o monitoramento territorial é fundamental também para proteger os povos isolados, aqueles que, voluntariamente, optaram por não estabelecer contato com não indígenas ou mesmo com parentes já contatados. Na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, há registros de dois povos isolados historicamente identificados, o povo Jurureí e o povo Vyraparakwara.
A Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau é uma das mais pressionadas da Amazônia, alvo constante de desmatamento ilegal, grileiros e madeireiros. Mesmo diante dessas ameaças, os povos indígenas da região têm resistido, combinando conhecimento ancestral e inovação tecnológica para proteger suas terras. O intercâmbio proporcionou um espaço essencial para a troca de experiências, fortalecendo as estratégias de monitoramento e garantindo que as comunidades possam seguir resistindo.
Entre as atividades na aldeia, os participantes tiveram a oportunidade de vivenciar, na prática, um dia de monitoramento. Guiados pela equipe de vigilância do território, o grupo partiu em voadeiras, navegando por 30 minutos até a área a ser monitorada.
PROTAGONISMO FEMININO
As mulheres têm desempenhado um papel fundamental nos grupos de monitoramento territorial, demonstrando protagonismo na defesa de seus territórios e na preservação ambiental. Apesar de, historicamente, a vigilância territorial ter sido associada aos homens, cada vez mais mulheres indígenas assumem essa tarefa, utilizando tecnologia e conhecimento tradicional para proteger suas terras, ação que fortalece a segurança dos territórios.
Um exemplo desse protagonismo é Amalha Nawa, professora da língua materna do seu povo, que vive na Terra Indígena Nawa, no Acre. Atuante no monitoramento territorial de sua comunidade, Amalha e sua equipe utilizam ferramentas como drones e GPS para mapear e proteger a região. “Nós nos organizamos por cerca de dois meses para realizar uma expedição de monitoramento. Utilizamos drone e GPS, e uma parte da nossa equipe foi formada especificamente para manusear esses equipamentos”, explica. Durante o intercâmbio, Amalha destacou as diferenças nos desafios enfrentados, ressaltando a importância da troca de experiências. “Aqui, os parentes enfrentam muitas invasões de fazendeiros, algo que não vivemos na nossa terra. Mas essa troca nos permite aprender novas formas de monitoramento e levar esse conhecimento para nossa comunidade”, acrescenta.
Na Terra Indígena Rio Humaitá, também no Acre, a presença feminina no monitoramento é ainda mais expressiva. Segundo Manuel Huni Kuin, liderança indígena e professor da comunidade, metade da equipe de monitores territoriais é composta por mulheres. Para ele, essa inclusão é essencial, pois fortalece a proteção do território e amplia a valorização do conhecimento feminino. “Em nosso território, metade dos monitores territoriais são mulheres. É muito importante que as mulheres estejam incluídas neste trabalho, elas conhecem o território e também se preocupam com a sua preservação. Precisamos valorizar o conhecimento feminino”, destaca Manuel. Dessa forma, a atuação das mulheres no monitoramento territorial não apenas reforça a defesa ambiental, mas também impulsiona o reconhecimento de seu papel como guardiãs dos territórios indígenas.
O PAPEL DA TECNOLOGIA NO MONITORAMENTO E AS POLÍTICAS ANTI-INDÍGENAS
Nos últimos anos, a Kanindé, em parceria com o WWF-Brasil, tem investido na formação de indígenas para o uso de tecnologias como drones e aplicativos de georreferenciamento. Essas ferramentas permitem mapear áreas desmatadas, registrar invasões ilegais e fortalecer as denúncias junto aos órgãos de fiscalização. O uso dessas tecnologias tem sido essencial para a defesa dos territórios indígenas e a preservação da biodiversidade.
Os treinamentos oferecidos incluem não apenas a operação de drones e dispositivos móveis, mas também a interpretação de imagens de satélite e o uso de softwares para análise de dados ambientais. Isso tem permitido que os monitores indígenas atuem com maior precisão e eficiência, cruzando informações em tempo real e compartilhando evidências concretas das ameaças que enfrentam.
Damarys Elage, Coordenadora do núcleo de Geoprocessamento da Kanindé, explica: “com o uso de imagens de satélite, drones e das câmeras fotográficas, agora conseguimos comprovar o que realmente está acontecendo dentro dos territórios. As imagens revelam a presença de grileiros, madeireiros, o avanço do desmatamento ilegal e a atividade garimpeira. Essas evidências fortalecem nossas denúncias, tornando elas mais concretas e difíceis de serem ignoradas.”
Nos últimos anos, os povos indígenas têm enfrentado ameaças crescentes devido ao avanço de políticas que buscam restringir seus direitos territoriais. Uma delas é a tese do “Marco Temporal”, que argumenta que os indígenas só teriam direito às terras que ocupavam fisicamente em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Essa interpretação limita a demarcação de terras indígenas e coloca em risco comunidades que foram expulsas de seus territórios antes dessa data. Isso reforça ainda mais a urgência da formação e da criação de redes de monitoramento territorial. Diante do enfraquecimento das proteções legais, o uso de tecnologias e a articulação entre os povos indígenas tornam-se estratégias essenciais para a defesa de seus territórios.
O intercâmbio encerrou-se com o compromisso de continuidade e fortalecimento das redes de monitoramento territorial, reafirmando a união entre os povos indígenas na proteção dos territórios ancestrais. A troca de experiências demonstrou que, além das ameaças enfrentadas, a resistência e a inovação caminham juntas na defesa da floresta viva e em pé.